sábado, 2 de junho de 2007

A Galinha Dourada

Conta-se entre as galinhas, que num país longínquo viviam duas galinhas, em perfeita harmonia, e um galo, muito vistoso, que dava boas vindas à aurora com gracioso cantar.
Educadas por natureza as galinhas eram amigas e partilhavam os talos das couves, as minhocas e os gãos de milho que vinham da mão da quinteira.
Uma era negra e a outra de penas douradas.
O galo, que mais não tinha, tratava as suas companheiras de igual modo. Uma parte do dia com uma e a outra metade do dia com a outra. E assim viveram até ao dia em que ambas estavam prontas para serem mães. Cada uma tomou o seu retiro e ambas permaneceram no seu choco durante vários dias, saindo de quando a quando para comerem alguma coisa e voltando de seguida.
O galo, a partir dessa data, trovava para o amanhecer com poesias dedicadas à sua condição de futuro pai.
E todos os animais circundantes estavam na expectativa de ver como seriam as novas espécies do galinheiro.
Por obra de um certo destino deu-se o impensável. A galinha negra deu à luz quatro pintos, cada um mais saudável que o outro, e a galinha dourada não retirou qualquer pinto dos ovos que guardava.
Melâncólica meteu-se na sua vidinha e olhava de longe a nova mãe com os seus filhotes.
Os rebentos já saíam do seu ninho acompanhando a mãe para onde quer que ela fosse. Eram amarelinhos com manchas negras e o galo veio cumprimentá-los. A galinha dourada fora posta de parte e sentia-se, considerávelmente, triste.
Quando a quinteira atirou os talos verdes e os grãos de milho correram em grupo para se alimentarem. Mas a galinha negra lançou três boas bicadas à dourada que ela permaneceu a um canto esperando que sobrasse alguma coisa:
- Primeiro eu e os meus filhos, que são pequenos, e depois logo vens tu! disse autoritáriamente a nova mãe.
No fim não sobrara nada e a galinha dourada teve de passar fome nessa noite. E assim nesta disputa se foram passando os dias, a galinha negra e os seus filhos a engordar e a galinha dourada a emagrecer.
O galo tinha grande prefêrencia pela galinha negra, cujas coxas eram mais roliças e o corpo mais apetecível. Até no namoro a galinha dourada ficava a perder.
Já os pintos eram frangos, quando um dia solarengo apareceu a quinteira a olhar para o galinheiro acompanhada do marido.
- A galinha dourada está muito magra, disse a quinteira.
- Sim pois, mas pensa que agora já tens três frangas e um frango, por isso o melhor é levarmos a galinha preta, pois fará melhor guisado, disse o marido da quinteira lambendo as beiças só de pensar.
E num esvoaçar de corridas e penas a galinha preta foi a escolhida para desaparecer do galinheiro. Quando ia de asas juntas, na mão do quinteiro, carcarejou para a galinha dourada:
- Desculpa se te fiz mal, não fui uma boa amiga, se te tivesse deixado comer agora podias ser tu em vez de mim a ir para a panela...
- Deixa estar não faz mal. Eu compreendo o que fizeste, vai lá á tua vida que eu perdoo-te.

Moral: A maldade é a nossa morte.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

A Parteira

Era uma vez uma aldeia que sobressaía na clareira de um denso bosque. As casas eram meticulosamente pintadas, os telhados brilhavam como espelhos e os canteiros estavam em flor, porque já tinha chegado a Primavera. Já se podiam colher frutos dos pomares e não faltava alimento de espécie alguma. Os aldeães andavam aterafados com a lide, já que daí dependia muito, o sobreviver no Inverno.
Vivia nesta aldeia uma mulher de bom coração responsável pelo nascimento da grande maioria das pessoas. Quando as mulheres estavam prestes a dar à luz, Maria agarrava na bacia e nas tolhas de linho puro e lá ia amparar o milagre da vida.

Certo dia de uma semana, do trismestre da Primavera, Maria foi chamada para mais uma tarefa. Levou os seus instrumentos e partiu de cara risonha até à casa do santeiro da aldeia.
Após algumas horas de dor, de respiração compassada e de forças combinadas, a mulher do Santeiro deu à luz um rapaz cheio de força e vitalidade. Houve festa nessa noite e todo o dia seguinte. Maria estava feliz, por mais uma vida amparada pelas suas mãos sábias e experientes.
Durante a festa uma criada veio junto do Santeiro dar uma notícia ao ouvido.
- Parem a festa que eu já volto! ditou em alta voz, calando as gentes , a música e restando um burburinho de perguntas em cadeia.
Voltou daí a minutos e notíciou a dura realidade:
- O meu filho e a minha mulher acabaram de morrer.
Desesperada Maria, perguntou com espanto:
- Que se passou?
O santeiro carregado de dor, perdido e amargurado, respondeu-lhe:
- Fizeste mal o trabalho, maldita sejas.
As palavras ecoaram durante os dias seguintes na cabeça de Maria como pedras atiradas ao sino. Não foi aceite no enterro e mais ninguém lhe dirigiu palavra. Como vivia daquele dom e não fora mais solícitada, os víveres começaram a escassear e a fome apareceu à umbreira da sua
porta.
Passou-se o Verão, o Outono e o Inverno surgiu a passos lentos e frios trazendo o seu alvo manto. A lenha crepitava só para se aquecer , mas não havia nada na panela de Maria, nem um miolo de pão esquecido, sequer. Todos estes meses pensara no acontecimento, tinha a certeza de ter deixado a santeira e o filho em perfeitas condições. Havia ali qualquer coisa, mas nunca saberia o quê.
Enfraquecida e faminta resolveu dar uma volta pela aldeia, a ver se encontrava alguma coisa para comer.
As pessoas estavam recolhidas e não se via viválma pelas ruas. O frio assoviava por entre as roupas leves que Maria trazia enroladas ao corpo. Depois de muito andar sem avistar nada, entrou deseperada na Igreja local. Prostrou-se diante das imagens, esculpidas pelo santeiro, pedindo ao silêncio, misericórdia.
- Maria... uma voz ecoou contra as paredes.
- Quem sois?, perguntou maria olhando para todos os lados, qual ratito assustado, sem avistar quem fosse.
- Estou aqui diante dos teus olhos, não tenhais medo!
Maria nem queria acreditar que a Santa do altar se lhe dirigia em prosa e som.
- Fosteis vítima de um embuste. O santeiro e a sua criada são amantes há muito tempo. A Santeira foi envenenada bem como o seu filho, pelo ciúme de Amélia. Se queres justiça terás de provar à aldeia que tudo não passou de um assassínio.
- Valha-me os santos todos... Como o poderei fazer?
- Tereis de ser muito inteligente, já que ninguém em vós acredita.
Maria agradeceu e saiu da Igreja com um novo brilho no olhar. Já tinha resposta aos seus porquês, mas agora vinha o pior, como poderia provar?
Senhora de alguma cultura, resolveu escrever uma carta à criada do Santeiro. No dia seguinte foi dá-la a um mensageiro que a levou sem demora até às mão de Amélia.
Com emoção e curiosidade Amélia, que não sabia ler pediu ao Santeiro que lhe traduzisse os garatujos que vinham naquela carta:
"Sei o que fizeste na Primavera, Amélia. Os Deuses não dormem, não comem nem bebem desde esse dia. Devereis soltar a voz e contar a verdade."
- Que quer isto dizer?, perguntou o Santeiro à criada.
Amélia visívelmente incomodada com recortes na voz respondeu:
- Não sei, talvez... alguém saiba do nosso amor!
- Sou viúvo e homem, todos sabem que partilho a esteira contigo, não será de certeza essa a questão.
- Pois não sendo isso não tenho a menor ideia do que seja, repondeu amedrontada.
Os dias foram passando e a relação do Santeiro com Amélia arrefeceu por falta de cumplicidade. E antes que fosse retomado o assunto nova carta surgiu nas mãos de Amélia, que desta vez resolveu levar ao clérigo da aldeia para que ele a decifrasse.
" Ainda não tomasteis medidas para assumirdes o vosso crime? Ou quereis que se convoque reunião no pelourinho para expor públicamente aquilo que vós não ousais expor?"
- Que quer isto dizer Amélia, perguntou o clérigo espantado.
- Pois... não sei. Deve ser alguém que goza de inveja a meu respeito, santíssimo.
- A que crime se refere?
- Não faço ideia, sou uma simples criada...
- Está na eminência de reunir a aldeia para expor algo sobre ti, não creio que seja uma simples mentira, logo diante de todos...
- Perdoe-me, por amor ao santeiro envenenei a mulher e o filho, pois morria de ciúmes. Perdoai-me, perdoai-me e não conte nada a ninguém.
Amélia caiu no pranto e o clérigo uniu as mãos:
- Esse é um grande pecado que cometesteis Amélia. Não há amor que valha a vida de dois inocêntes. Para além de que Maria tem sofrido o desdém de todos desta aldeia, sem sequer ter tido culpa alguma.
- Eu sei, eu sei, não queria prejudicar ninguém. Foi tudo por amor, tudo por amor, senhor!
O Santeiro que a tinha seguido, deu de caras com a verdade e saiu do buraco cheio de ira e dor:
- Traiste-me Amélia, não passais de um grão de pó para mim. Afinal eu não vos conheço. No vosso regaço chorei a perda de um filho que era a minha contínuidade, a perda de sua mãe que não amava, mas que estimava. Em vós confiei e dei o meu amor. Matasteis o meu sonho, um pedaço de mim e fizesteis com eu fosse injusto com Maria, que vive a penar desde o dia da vossa derradeira acção. Sereis julgada como um cão e pessoas como vós não terão liberdade, porque não sabeis dar-lhe valor.
- Perdoai-me senhor, perdoai-me eu partirei e não voltarei mais. Deixai-me partir.
Enquanto isso Maria apareceu à porta da Igreja.
- Deixai-a partir, santeiro.
- Maria? disseram em uníssono o clérigo, Amélia e o santeiro.
- Sim sou eu. Deixai-a partir que eu ajudei a sair ao mundo e muito me condoeria se lhe tirassem a vida.
- Mas Maria, ela fez-te sofrer, matou o meu filho, a minha mulher. Não, não pode escapar tem de se fazer justiça.
- Acaso sois vós menos pecador que Amélia, senhor? O vosso filho nascia sob a sombra de duas mulheres onde depositaveis a vossa seiva. Acaso sois mais puro?

Depois desta passagem chegou novamente a Primavera. Os aldeões não souberam de nada e Amélia carregava no ventre um filho do santeiro. Na hora do parto, não havia sabedoria para assistir com firmeza à saída da nova vida e os aldeães chamaram Maria para a tarefa. Depois de horas marcantes um choro de vida saltou as janelas e as mulheres, que rezavam em volta da casa, abriram sorrisos de contentamento:
- Graças aos Deuses, a criança nasceu!
Maria saiu como sempre com o menino nos braços e elevou-o para que o vissem. Uma salva de palmas choveu como flores.
- Não vos regozijais tanto, disse Maria à porta, a mãe faleceu. Não suportou a saída de pés do menino e sucumbiu no último minuto.
Fez-se silêncio.
- Deus esteja convosco, Maria. Sei que desteis o vosso melhor, disse o santeiro rasgando a tensão e prosseguiu.
- Alegrem-se amigos, que o meu filho sobreviveu, façamos uma festa que desta vez estou, indubitávelmente, feliz.